segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Direito, inovação e o novo capitalismo, artigo de Luciano Benetti Timm


Luciano Benetti Timm é advogado, doutor em direito pela UFRGS. Pesquisador de Pós-doutorado na Universidade de Berkeley, Califórnia. Ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia. Artigo publicado no Valor Econômico de hoje (24).

Os Estados Unidos amargam recentemente um desemprego relativamente alto para sua história. É interessante rememorar que o estado da Federação mais rico é a Califórnia. E o que produz a Califórnia, já que não tem fábricas de carro? Ela é rica em produção de inovação tecnológica protegida por marcas e patentes e criatividade protegida por direitos autorais. Não por acaso, ela é o berço de empresas como Yahoo, Facebook, Google etc.

Essa nova face do capitalismo, que é um capitalismo de "ideias" e não mais de "concreto" (COOTER, 2008), acaba distribuindo, quem sabe, menos empregos diretos do que uma fábrica tradicional. No entanto, parece um processo inexorável, tanto que para este caminho parecem rumar China, Índia e quem sabe Brasil.

E o que é preciso para que um país gere inovações se não quiser ficar preso a um capitalismo ultrapassado? Note-se que os Estados Unidos detêm mais de 40% das patentes produzidas no mundo e seu PIB per capita ainda é absurdamente superior ao da China.

Segundo um paper seminal do professor COOTER (2008), a inovação requer a união de financiamento e de ideias (seed money, Angel investors, etc). No modelo norte-americano, quem tem ideias são agentes privados em busca de retorno financeiro. Ao Estado, cumpre fazer o menos, e fazendo menos, ele faz mais.

Com esta metáfora, o professor Cooter refere-se à teoria de que diante da incapacidade de agentes governamentais preverem o futuro, devem eles deixar de lado uma política industrial e se concentrar no que melhor pode fazer: educação e infraestrutura. A situação é diferente na Ásia, onde o Estado toma a si o papel de direcionar investimentos (lembrando que a Ásia ainda não é a fronteira da inovação tecnológica).

E o que o direito tem a ver com esse processo de geração de inovação? Tudo, segundo o mesmo professor. Segundo ele, será o Direito quem resolverá o problema de "desconfiança recíproca" inerente ao processo de inovação: de um lado, receio do inventor de que a invenção seja apropriada pelo financiador, e, de outro lado, receio de que o inventor se aproprie do dinheiro do investidor. Lembrando que na teoria do professor Cooter, sem essa união não há capitalização da inovação ao fim do dia.

O direito necessário para romper com a desconfiança recíproca depende do estágio e do modelo de investimento. Existem fundamentalmente três estágios do financiamento à inovação: um mais rudimentar (família, amigos etc); financiamento privado bancário ou vai recursos de private equity, seed money; financiamento público via mercado de capitais (e não governamental).

Para o primeiro estágio, o direito seria menos importante, já que a desconfiança recíproca é vencida por vínculos pessoais, relacionais e de comunidade. Para o segundo estágio, há a necessidade de um bom direito contratual, de propriedade (inclusive intelectual) e um sistema processual minimamente eficiente que faça cumprir estas regras contratuais e proprietárias. E o terceiro e último estágio requer um direito societário e de mercado de capitais.

Resta ao Brasil investir em educação e infraestrutura física. É bem verdade que a ciência brasileira vai bem em papers e em publicações, mas são estudos sem valor prático e não se convertem em inovação tecnológica. Eventualmente aqui o sistema jurídico (ou de incentivos) também possa mudar. Eventualmente o curriculum lattes dos professores pudesse ser compensado pela geração de patentes.

E no tema de infraestrutura, o direito pode contribuir com um novo direito administrativo, que não discrimine o estrangeiro, que valorize as parcerias público-privadas e que encaminhe a solução de conflitos por mediação e arbitragem.

Por fim, deve-se ter em mente que o processo de inovação tecnológica está relacionado com os direitos de propriedade intelectual. O grande dilema do inovador reside, além do problema de financiamento antes comentado, na dificuldade se apropriar do valor social daquilo que produziu, já que a informação - que é a base da inovação - tem a característica de um bem público (não excludente e não rival). Em tese, depois de escrito o livro ou feita a música, qualquer um poderia usufruí-los sem ter de pagar por isso. Propugna-se, assim, que o ordenamento jurídico deve, ao ter por certo que o inovador é um agente econômico racional e que reage a incentivos, incitá-lo a enfrentar o custoso, arriscado e incerto processo de inovar.

Até hoje o melhor caminho para que seja alcançado tal desiderato é pela via da livre iniciativa econômica e por meio dos direitos de propriedade intelectual. Os direitos de propriedade intelectual serão essenciais para a apropriação privada da inovação gerada. A questão ainda não respondida pela análise econômica do direito com segurança é o tempo necessário para gerar esse estímulo. Em grandes inovações, o período de proteção deve ser maior. Em empreendimentos menores, não haveria a mesma necessidade temporal.

Fonte: Jornal da Ciência, 24/02/2012

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O insustentável preconceito do ser!




Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador, vinha a convite de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter. Solícitos, os colegas da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores programas de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto de novos conhecimentos.

Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:
- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!
-Então estarei em casa, repliquei ironicamente.
-Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô falando de um tipo de gente.
-A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da capital paulista?
-Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem "farofa" no parque.
-Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela do carro e atirou uma caixa de sapatos.
-Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua terra, seu jeito de falar....

De fato, percebo que não existe a intenção de magoar. São palavras ou expressões que , de tão arraigadas, passam despercebidas, mas carregam o flagelo do preconceito. Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se assume como tal. Difícil combater um inimigo disfarçado.

Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que, aliás, podem ser qualquer nordestino. Com ou sem a "Cabeça chata", outra denominação usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.

Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras que segregam. Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.

Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:
-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o seguinte:
"O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, quero o teu amor".
"É ofensivo", diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar, como se fosse doença? E as pessoas nunca percebem.

A expressão "pé na cozinha", para designar a ascendência africana, é a mais comum de todas, e também dita sem o menor constragimento. É o retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.
O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no qual ressalta:

"Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra 'niger' para humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim:
'Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer, agarre um crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra crioulo).

Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan 'black is beautiful'. Daí surgiu a linguagem politicamente correta. A regra fundamental dessa linguagem é nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém".
Será que na era Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se referir aos negros e mulatos americanos de hoje?

A origem social é outro fator que gera comentários tidos como "inofensivos" , mas cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma que o picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com relação aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:

- A minha "criadagem" não entra pelo elevador social !
E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes, dirigidos aos homossexuais ? Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, "viado", maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas. Quem se importa com o potencial ofensivo?

Mulher é rainha no dia oito de março. Quando se atreve a encarar o trânsito, e desagrada o código masculino, ouve frequentemente:
- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!
Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:
-Só podia ser loira!
Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:
- Só podia ser judeu!

A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos árabes. Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos extras é motivo de chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia ...
Gosto muito do provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é o que entra, mas o que sai da boca do homem". Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às palavras o poder de ratificar ou transformar a realidade. São partículas de energia tecendo as teias do comportamento humano.

A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável. O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os cidadãos. Revela a ignorancia e alimenta o monstro da maldade.

Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra, passa a viver nas ruas e amanhece carbonizado:
-Só podia ser mendigo!
No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos, e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:
-Só podia ser bandido!

Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São Paulo, no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que temos de melhor para dizer uns aos outros.

PS: Fui ao Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos.

Rosana Jatobá - jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da Universidade de São Paulo.